Além dos Sonhos
- Ignatyus Arkadel
- Nov 4, 2016
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— Não pode acabar assim. — Disse enquanto suas lágrimas se mesclavam com as gotas de chuva que escorriam por sua face.
Rah contemplou o negro horizonte do alto da torre construída em sua homenagem. Ao seu redor, tão longínquos quanto alcançava a visão, só se estendia o agitado mar iluminado periodicamente pelos raios da tormenta. Ainda não podia ve-los, mas os sentia se aproximar pouco a pouco. Em poucas horas os navios e as cidadelas alcançariam às costas de Tol Rauko e ele nem sequer ele poderia deter a todos.
Durante longos minutos permaneceu assim, ensopado em meio a chuva como uma mancha negra que partia em dois o cinzento firmamento. Levava a capa envolta ao seu redor, o que lhe dava o aspecto de uma ave de mal agouro entre as grotescas gárgulas de metal. Por sua cabeça ainda se passavam milhares de planos, jogadas desesperadas que pudessem dar um giro sob tudo aquilo e lhe devolver o controle, ainda que sabia que só estava mentindo para si mesmo. A Cofradia já não existia. Seus exércitos, arrasados. Havia perdido a guerra e o mundo lhe escapava irremediavelmente das mãos sem que nada do que fizesse fosse devolve-lo. Para alguém que tratou de destruir o destino o que deparava o futuro se estava tornando muito claro sob seus olhos.
O sonho se partia como um frágil cristal.
Vagando em seus pensamentos, haveria permanecido assim por horas se não fosse uma sensação que lhe sacou de seu estado atônito. Mesmo a distância, a centenas de quilômetros, pôde perceber uma presença diferente das demais e um irônico sorriso se desenhou em seu rosto.
— Zhorne Giovanni... — Murmurou estreitando os olhos com certa melancolia. — Depois de tanto tempo, no fim poderemos nos conhecer.
"É estranho, sabe? Você e eu nos parecemos muito, mais do que nenhum de nós ousemos admitir. Ambos temos lutado contra um adversário desconhecido e temos perdido tudo. Camaradas, amigos, as pessoas das quais amamos... O que lhe sustenta, meu inimigo? O que é que lhe faz avançar até a mim em meio ao caos e a tormenta? É ódio? Esperança talvez? Ou pode ser que seja como eu... Que, simplesmente, já não me resta nada..."
Como se acabasse de despertar de um mal sonho, Rah levantou lentamente a cabeça e olhou aos céus com arrogância, que lhe responderam desafiantes com um potente estrondo.
— Continuem pensando que ganharam outra vez... Porque no final, como sempre, tudo se ocorre tal como eu havia planejado. Suponho que para vocês isto não tenha parecido mais que um mero jogo. Uma criança estúpida tratando de fazer algo demasiadamente grande para ela.
"Provavelmente nada do que fiz os tenha chegado a preocupa-los. Ou... Ou será que sim? Não pelo o que sou, nem pelo o que tenho sido. Mas pelo que represento?"
Distraído por aquele pensamento, Rah abaixou a cabeça enquanto adotava uma expressão burlesca.
— Se decidam. Me temais? A mim? A um simples homem? Não se preocupes, ainda os darei razões de sobra para isso.
E então, já à borda do desespero e da loucura, riu, mas sua trágica gargalhada foi arrastada pelo forte vento da tormenta. Não ia se dar por vencido ainda. Em seu interior sabia o que tinha que fazer. Na realidade, sempre soube.
Rah se deteve e começou a examinar atenciosamente o ar, inseguro do que havia sentido. Subitamente, a realidade se deformou por trás dele; uma gigantesca foice apareceu do nada e se dirigiu até sua cabeça em uma velocidade desumana. Entretanto, como se no último momento percebesse o ataque, o Senhor de Judas se apartou da trajetória do corte, que só lhe roçou inofensivamente na parte direita do rosto. Rah girou ao instante, mas não havia rastro algum de seu desconhecido assaltante. Com muita calma, passou os dedos pela ferida aberta em sua face e olhou o sangue com certo desdém.
— Um mero ataque de surpresa... que fútil. — Comentou com certo tom de indiferença. — Isto é tudo o que pode fazer para me matar?
Em um rápido movimento, desembainhou sua descomunal espada e a arrastou pelo solo fazendo saltar chispas ao seu redor.
— Se revelem! Não tenho todo o dia para jogar com vocês.
Como resposta a essas palavras, nos tetos do salão começaram a se formar brilhantes runas rubras precedidas de desgarradores gritos; era como se a realidade inteira houvesse começado a estremecer. Uma após a outra, três estranhas criaturas se manifestaram estridentemente na estância, enquanto todas as velas se acendiam com um tom azulado. O primeiro destes seres se assemelhava a um anjo de aspecto altivo, com suas asas de cor cinza manchadas de sangue e uma enorme foice negra nas mãos. O segundo era uma obesa e deforme imitação de ser humano cuja descomunal boca, cheia de dentes afiados, podia se ver uma escuridão infinita. O último, sem dúvida o mais aterrador do trio, era uma besta cujo corpo era composto por carne, metal e fogo.
— Orgulho, Gula e Ira. Três dos Príncipes Demônio. Enviar meros cães no lugar de atuarem diretamente... Tão interessados estão por seguirem ocultos que nem sequer mandam seus agentes? Não posso dizer que estou muito impressionado pela escolha. Nem sequer são deuses.
— Não ocorre o mesmo por nossa parte, oh, "Rei dos Homens". — Respondeu o anjo cinzento com uma melodiosa voz e certa ironia. — Já não recordo da última vez que um humano sobreviveu a um de meus ataques.
— PORQUE PERDES O TEMPO COM EXPLICAÇÕES, ORGULHO? NÃO É MAIS QUE CARNE... CARNE!! — Rugiu a incandescente besta se abalando sobre Rah.
O Senhor de Judas estava preparado para a investida, mas ainda assim lhe foi difícil de não ser envolvido pela monstruosa velocidade de Ira. Reunindo suas energias, se afastou da trajetória da massa de metal e fogo ao mesmo tempo que arremetia até ela com sua espada. O Príncipe Demônio, perplexo pelo movimento de seu antagonista e pela dor que sentia por causa da estocada, foi incapaz de se deter e atravessou o muro que havia atrás dele o fazendo saltar pelos ares.
— Deveriam vir os sete. — Sentenciou Rah. — Haveriam tido uma mínima oportunidade.
A expressão de Orgulho se ensombreceu.
— Demasiados somos para um simples mortal, seja mendigo ou rei. Se acabaram as apresentações.
Tão pronto terminou de pronunciar essas palavras, se precipitou até ele empunhando a obscura foice. Com uma velocidade surpreendente, Rah alçou sua própria espada e interceptou o ataque do anjo cinzento, produzindo um potente vendaval no momento em que ambos os cortes se encontraram. Após alguns instantes de silêncio, nos quais os oponentes trataram de medir as forças do outro, um cruel sorriso se desenhou na face de Orgulho que começou a arremeter contra seu rival. Seus movimentos eram tão rápidos que o corpo dele se desdobrava deixando faíscas para trás de si, pelo qual Rah se viu pouco a pouco obrigado a retroceder enquanto as colunas da sala voavam pelos ares.
De repente, duas potentes descargas de energia sobrenatural voaram até o Senhor de Judas, que pôde distinguir pelo rabo de olho como Gula estava gesticulando símbolos arcanos com expressões intensas. Fazendo alarde de uma incrível habilidade marcial, isolou Orgulho com uma manobra de mão e força e se preparou para receber ambos impactos. Surpreendentemente, a potência das magias foi menor do que o que havia suposto, ainda que ao chocar contra sua arma a explosão resultante lhe lançou até um dos muros da estância. Sem se perder um instante, levantou a cabeça a espera do seguinte ataque de Orgulho ou Gula, mas para seu desconcerto nenhum dos dois havia se lançado atrás dele; permaneceram tranqüilamente nas esquinas opostas do grande salão.
Quando compreendeu o que estava se passando, já era demasiadamente tarde.
A parede em suas costas se rompeu enquanto a ardente massa metálica de Ira surgia através dela. Igual como fizera antes, Rah tratou de se afastar do encontro com a besta, mas desta vez não teve tempo e foi investido diretamente. Seu corpo começou a atravessar uma parede após a outra, seguido pelo demônio que não parava de rir. Inclusive para alguém com a resistência de Rah, aquele castigo era mais do que seu físico podia suportar. As costelas estalaram e o sangue começou a brotar pela abertura dos lábios. Vendo a sua presa severamente danificada, Ira parou diante dele e aproveitou o impulso do freio para lança-lo de volta até o grande salão, aonde Gula lhe agarrou no ar.
Aqueles fortes braços o esmagaram como se fosse uma simples brincadeira. A pressão era tão grande que, não fosse por sua armadura e sua energia que estava lhe fundindo a esta, lhe haveria partido em dois como um simples galho seco. Lentamente, Gula começou a aproxima-lo até sua enorme boca aberta, e mesmo o Senhor de Judas sentiu um calafrio ao olhar o vazio infinito que havia ali dentro.
— Pareces...tão...sa...boroso... — Tartamudeou o obeso demônio com certa ansiedade.
Como se estas palavras lhe houvessem tirado de algum transe, Rah reuniu suas forças restantes e ergueu a lâmina que ainda carregava nas mãos cortando os braços de seu captor. Tal como seus pés posaram em terra, girou sobre si mesmo traçando um enorme círculo com sua espada e golpeou o monstro com toda a potência da qual foi capaz. O impacto teria partido uma montanha em duas. A cabeça de Gula rodopiou limpamente pelo solo, mas seu adversário havia enfrentado muitas entidades para pensar que isso bastaria para matar uma criatura cujo poder equivalia ao de um deus caído. Sem lhe dar tempo a se recuperar, buscou seu núcleo espiritual no seboso corpo que permanecia em pé ante a ele e o atravessou com a mão. A sensação, inclusive através dos grossos suportes de metal, foi repulsiva, mas seguiu fazendo força até que notou a essência da criatura entre seus dedos. Se dando conta do perigo em que se encontrava, a alma de Gula se estremeceu assustada e tratou de escapar até outro plano, mas antes de que fosse capaz de faze-lo, o Senhor de Judas a agarrou, destruindo o demônio completamente. Muito lentamente, lhes dando as costas aos demônios, Rah manteve a mão ensangüentada ao alto.
— Um. — Disse com seu habitual tom indiferente.
— DEVORAREI TUA ALMA POR ISSO! — Ressonou a desgarradora voz da besta incandescente enquanto corria de volta pelo grande salão. — GRITARÁS!
Com uma frieza inusitada, Rah encarou Ira sujeitando sua Legisladora com ambas as mãos. Todo seu corpo se tensionou enquanto acumulava seu Ki e o deixava fluir para o exterior. Durante uns instantes, a energia que emanou dele foi tão intensa que começou a surgir potentes descargas azuladas e as pedras saltavam pelos ares. O demônio o observou cuidadosamente, desconsertado ao sentir semelhante nível de poder em um mortal, mas essa confusão só avivou mais a flamejante raiva que cernia em seu interior. Sem se deter, saltou pela terceira vez a espera de ver até aonde o homenzinho se esquivava, apenas para modificar sua trajetória no ar e pega-lo em cheio.
Mas desta vez Rah não tinha intenção de se esquivar. Seus pés se cravaram profundamente em terra, criando gretas no solo, e interceptou em pleno vôo a besta com sua espada. Naquele ataque pôs toda sua habilidade, seu poder e também sua alma.
Foi o suficiente.
Limpamente o corte rasgou em duas partes o corpo e a essência do Príncipe Demônio. Os restos de Ira caíram pesadamente a direita e esquerda de Rah e começaram a se quebrar como cristais vazios. Nesta ocasião não teve que se incomodar em buscar seu núcleo espiritual; não havia restado nada dele.
— Dois. — Sentenciou.
Mas a luta estava longe de ser terminada. Rah sabia que Orgulho era, com diferença, o mais perigoso dos três, e lhe preocupava muito que não participasse de maneira aberta no combate. A possibilidade de que houvesse fugido nem sequer lhe passou pela mente; seria estúpido esperar algo assim de uma entidade que representava a soberba do homem. Mas por mais que tentasse localiza-lo, não restava nem o rastro de sua presença. De repente, sentiu uma sensação de desossego, algo que lhe impulsionou a olhar para cima quando já era demasiadamente tarde. Orgulho se encontrava suspenso na abóbada do grande salão, com suas ensangüentadas asas completamente abertas e as mãos extendidas sobre uma esfera de energia crepitante. Seus dois companheiros lhe haviam dado tempo mais que suficiente para preparar seu sortilégio final e, com ele, a absoluta destruição de Rah.
— Escolha entre o céu e o inferno. Aonde mais lhe apeteça.
A magia arcana se desencadeou em cheio na metade do salão e a fortaleza inteira começou a se estremecer. Qualquer outro lugar sem as incríveis proteções tecnomágicas de Judas teria sido completamente se trasladado a dezenas de quilômetros em diante, mas ainda assim, muitas estâncias da fortaleza acabaram destroçadas. O piso havia cedido; escombros e entulhos caíam em toda a parte das plantas inferiores. Orgulho olhou divertido para baixo enquanto esperava que a fumaça se dissipasse. E então, pela primeira vez em sua existência quase eterna, o demônio sentiu algo parecido com a surpresa. Pode ser que, inclusive, sentisse o medo.
Entre a nuvem de cinzas uma imagem se alçava com calma, se sacudindo entre os entulhos e o sangue que lhe cobriam quase por completo.
— Impossível! Não pode estar de pé... Nada poderia estar de pé!
Dominando as estranhas emoções que lhe invadiam, o Príncipe Demônio invocou sua foice e sem se perder um instante se lançou em um milésimo sobre seu oponente. Este ainda estava cambaleante, mas empunhou sua espada e começou a deter as selvagens acometidas uma após a outra sem dizer sequer uma palavra.
— Cai! Cai! Cai! — O demônio gritava uma e outra vez enquanto se movia na velocidade do pensamento de um lado para o outro riscando a essência com seus cortes negros.
Na realidade, Orgulho era muito mais rápido e forte que Rah. Não porque tinha mais experiência ou habilidade, mas porque simplesmente sempre havia sido assim. Quando queria atacar alguém não buscava brechas na defesa de seu rival ou se incomodava em estudar seu estilo; só pensava que queria mata-lo e sua foice já o teria partido em dois. Ele, que havia ceifado inclusive a alma de deuses, sabia que era questão de tempo que seu adversário caísse da mesma forma. Depois de tudo, para o Príncipe Demônio, Rah não era mais que um homem.
Essa seria sua perdição.
No momento em que Orgulho descarregou nele o que devia ser seu golpe definitivo, o Senhor de Judas segurou a foice entre seus dedos e, com uma simples estocada, devolveu o ataque. O Príncipe Demônio desejou bloquear a espada, mas inexplicavelmente sua lâmina afastou um de seus braços e com ela abriu sua guarda. Como se formasse parte do mesmo movimento, Rah começou a flutuar de um lado a outro, lhe acertando uma infinidade de cortes por todo o corpo sem que Orgulho fosse capaz de responder. Mais que ataques, a coordenação e paixão de seus golpes davam a estranha impressão de que estivesse executando algum tipo de dança. Finalmente, traçou um círculo com os braços e apoiou a palma de sua mão sobre o peito do demônio.
Durante um segundo que se tornou eterno, ambos contendentes se entreolharam.
— Três.
Então, sem que a mão de Rah se movesse sequer um centímetro, o corpo de Orgulho saiu despedido ao longo de toda a estância atravessando uma coluna após a outra até acabar incrustando na parede oposta. Em seguida, a espada do Senhor de Judas cruzou o ar, o empalando contra o muro.
Mas, para a surpresa do demônio, seguia vivo. Rah havia evitado deliberadamente de alcançar seu núcleo espiritual e a criatura, ainda sem compreender o porque, havia se advertido disso.
Lentamente, com notória calma, Rah começou a cruzar a sala enquanto seu adversário se revolvia impotente na parede tratando de se liberar. Quando estiveram frente a frente, na última sombra de quem era, levantou arrogantemente sua cabeça com o porte de um soberano, a espada do que devia ser o golpe fatal. Rah se limitou a desencravar a espada deixando com que o corpo empalado caísse ao solo. O Senhor de Judas, coberto completamente de sangue, olhou a altiva criatura que se arrastava a seus pés com uma serenidade escalofriante. Lhe deu as costas e caminhou até as escadarias, mas ao chegar nas sombras se deteve alguns instantes sem olhar para trás.
— Corra demônio. Corra o quão longe puder e diga a teus amos: Hoje se inicia uma nova era.
Aquelas palavras não estavam carregadas de ironia nem raiva. Tampouco de alegria ou pena.
Simplesmente era a verdade.
Rah desceu pelas longas escadarias escuras que o introduziam no mais profundo da terra. Sua visão se encontrava nublada pela dor e o cansaço, mas conhecia perfeitamente cada confin daquelas escadarias, cada pedra daquela lúgubre passagem. Poderia descer nelas inclusive com os olhos fechados. Quando chegou até a base, se deteve olhando as enormes portas de metal. Apesar das proteções que as revestiam, sentia o descomunal poder que crepitava no interior. Lentamente removeu sua luva e pôs sua mão cheia de sangue sobre o painel circular.
— Abertura dos seis primeiros selos.
Com um som seco, toda a superfície metálica começou a se encher de símbolos brilhantes, formando uma reluzente árvore cabalística com sete sephirots. Quando terminou de se manifestar, uma após a outra, as capas de metal místico da porta começaram a se separar e Rah se introduzou no coração de Tol Rauko.
Utnapishtim.
Diante dele a imensa maquinaria se estendia a quilômetros e quilômetros sob a terra, até se cravar nas raízes da existência. Ao seu redor flutuavam centenas de paineis, repletos de fórmulas quânticas e sobrenaturais. O Senhor de Judas observou tudo minuciosamente enquanto avançada pela colossal estância. Milhões de almas, tanto de mortais quanto dos seus, haviam sido acumuladas naquelas ramificações de metal, um poder como jamais havia estado ao alcance do homem. Quando passou próximo do núcleo não pôde evitar esboçar um sardônico sorriso ao se fixar nas trinta peças de metal negro localizadas no painel central mas, sem se deter, seguiu adiante até chegar ao seu destino.
No centro daquele lugar havia um enorme cilindro de cristal cheio de tubos, cujo o interior se encontrava levitando uma mulher sumida em uma profunda letargia. Era bela de um modo dificil de explicar, tanto que faria os poetas sonharem. Ao olha-la, a expressão de Rah mudou levemente e seus olhos se encheram de certa melancolia.
— Eu lamento. Ainda não estás preparada, mas já não me resta nada mais.
Com pesar, passou sua mão ensanguentada pelo cristal, deixando quatro longas estrias rubras. Pela primeira vez desde a muito tempo, uma profunda tristeza lhe invadiu.
— Pode ser que isto seja um erro. Alguém me disse uma vez que nunca temos de perder a esperança, mas é estranho... agora essas palavras se tornaram demasiadamente ocas.
"Sabe? Eu teria apreciado lhe ensinar muitas coisas, tanto boas quanto más. Um pôr do sol, o pranto de uma criança, a dor de uma mãe ao dar a luz. Agora já não poderemos fazer-lo juntos. As vezes me pergunto... Quando perdemos nossa história? Como deixamos de ser donos de nosso próprio destino? Acaso... ele nos pertenceu alguma vez? Pode ser que o mundo que irá se criar seja um lugar muito pior do que este.
Mas terá sido nosso."
Pouco a pouco, a mão de Rah desceu sobre o painel de controle central de Utnapishtim. Dezenas de cabos se introduziram em sua carne, ascendendo por tendões e veias até se cravar no sistema nervoso de sua coluna vertebral. A dor foi desgarradora.
— Abertura do sétimo selo. Que se faça o silêncio nos céus.
De repente, um após o outro, todos os painéis da sala se apagaram na hora que uma colossal árvore sephirótica começou a se manifestar; primeiro por toda Tol Rauko, logo pelo Mar Interior e, posteriormente, em todo o mundo. A estrutura cabalística era tão vasta que podia se ver desde a própria estratosfera. E enquanto seu corpo e sua alma eram despedaçados pelo demencial poder que havia desencadeado, a voz de Rah ressonou pela última vez em toda a Criação. Aquelas palavras estavam impregnadas de um matiz solene e triste, como das que anunciam uma desgraça.
— E teu nome será Elhazzared (Eljared), que significa "O Paraíso Perdido".
E então o mundo se quebrou.
E de seus pedaços só restou o silêncio.
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